Textos de Apoio


Democracia, desenvolvimento e cultura cidadã

Antonio Albino Canelas Rubim *

O Brasil vive hoje um momento singular de sua história. Apesar das muitas limitações existentes, temos agora um dos períodos democráticos mais longos de nossa história. Mais que isto, habitamos um instante social ímpar em que passos relevantes podem ser dados no sentido de combinar democracia formal e democracia substantiva. Isto é, conjugar ritos formais da democracia e efetiva mudança das condições de vida dos cidadãos. Tais transformações estão relacionadas estritamente com as possibilidades abertas através da articulação, acontecida recentemente no país, entre democracia, desenvolvimento e enfrentamento da desigualdade social. Cabe lembrar que historicamente os governos das elites nunca se preocuparam em realizar um desenvolvimento associado à distribuição de renda, que estivesse voltado para toda a população brasileira.     

Todos nós sabemos que a trajetória histórica brasileira também foi comprometida por inúmeros golpes autoritários. Eles impediram a continuidade e o aprofundamento da experiência democrática tão necessária a sua instalação plena; ao amadurecimento político do país e à superação dos imensos problemas sócio-econômicos e culturais.

Como aconteceu muitas vezes em nossa história, a instalação formal da democracia no período pós-ditadura militar se realizou através de mais uma “transição pelo alto”, sem uma ruptura plena com o autoritarismo, vigente na sociedade brasileira. Esta alternativa implicou na implantação de uma democracia limitada, sem que ela tenha representado aprofundamento da democracia, mudança mais substancial na vida da maioria de nossa população e enfrentamento da perversa estrutura social brasileira, sempre carregada de desigualdades e exclusões sociais.

Somente no Governo Lula esta gritante dissociação entre democracia formal e substantiva começou a ser colocada em cena e questionada, ainda que de modo tímido em certas áreas sociais. Através das suas políticas, o Governo Lula deu início a um longo processo, que pode significar a superação da desconexão entre democracia formal e substantiva no Brasil. Com isto a democracia poderá expressar os interesses efetivos das maiorias populacionais.

O movimento mais substantivo das transformações aconteceu no âmbito das mudanças sócio-econômicas, com a inclusão de contingentes nada desprezíveis de excluídos da nossa desigual sociedade. Afinal, alterar a vida de dezenas de milhões de pessoas – populações próximas a da Colômbia ou da Argentina, os dois maiores países da América do Sul depois do Brasil – não pode ser algo desconsiderado. Esta mudança sócio-econômica significativa, inclusive para a vida de todas estas pessoas e do país, provocou um admirável fortalecimento de nosso mercado interno, que permitiu ao Brasil enfrentar de modo bastante satisfatório as recentes crises, provocadas pela especulação financeira internacional. Mas, tais mudanças não afetaram de modo profundo a estrutura sócio-econômica capitalista, que persiste como reprodutora de desigualdade e exploração.     

Mesmo com a limitação de não atingir de maneira contundente a estrutura sócio-econômica brasileira, a ampla mutação sócio-econômica não foi acompanhada de um processo de dimensão correspondente de transformações no ambiente da política, nem da cultura.

Na esfera política, muitos dos seus arcaicos procedimentos mostraram impressionante persistência no contexto de mudanças. As poucas inovações existentes não conseguiram sacudir o patrimonialismo, a lógica do favor, a pequena política e o déficit de cidadania que parecem estar fortemente impregnados na vida política brasileira. Nesta perspectiva, uma radical reforma política é cada vez mais necessária. Uma reforma política que garanta, dentre outros dispositivos, o exclusivo financiamento público de campanha eleitoral para inibir a prática do financiamento privado, que como todos sabem, é uma das grandes fontes da corrupção neste país. Os inúmeros escândalos estão cotidianamente confirmando isto. Além disto, o custo exacerbado das campanhas dificulta ou até impede a renovação da política, impossibilitando que ela expresse mais fielmente as transformações em andamento na sociedade brasileira.

Ainda no plano da política, a reforma do estado é outra necessidade urgente. O estado brasileiro foi criado pelas elites para servir as elites e excluir o povo. Os procedimentos e mecanismos ainda hoje existentes são prova cabal disto. Os dispositivos de participação – conferências, conselhos etc. – e de democracia direta, estimulados e potencializados a partir do Governo Lula, caminham no sentido de uma mudança do estado, mas não são suficientes para a sua transformação em um estado radicalmente democrático que seja governado em plenitude pelo interesse público e atenda as demandas justas da maioria da população.        

Um exemplo desta inadequação política do estado no plano cultural pode ser buscado nas grandes dificuldades de um programa inovador como o Cultura Viva. Ou seja, o programa, que muitas vezes é conhecido apenas como Pontos de Cultura, possibilitou que comunidades culturais, antes excluídas de uma relação político-cultural com o estado nacional brasileiro, começassem a desenvolver esta interação, mas através de dispositivos, em grande medida, inadequados para este processo de democratização da atuação cultural do estado. Os problemas do programa decorrem muito mais desta desconexão entre busca de inclusão e dispositivos inadequados do que propriamente de meros problemas de gestão. O estado existente, neste caso, não foi transformado para realizar uma relação – democrática, republicana, transparente, eficaz e com zelo pelo recurso público – com comunidades culturais, principalmente aquelas inseridas em setores populares.

A desconexão assinalada e a ausência de inovações substantivas nas relações políticas, que supere as corroídas tradições e a prevalência da “pequena política”, têm criado imensos obstáculos e comprometido as potencialidades da convergência entre democracia formal e substantiva no país. Cabe perguntar: como pensar uma democracia substantiva sem uma cidadania plena e ativa, uma sociedade civil organizada atuante e novas práticas políticas de democracia representativa e direta?

No horizonte da cultura também o cenário não foi até agora alvissareiro. Apesar das políticas culturais inovadoras empreendidas pelo Governo Lula, que enfrentaram de modo significativo as três tristes tradições das políticas culturais nacionais – ausências, autoritarismos e instabilidades –, elas não conseguiram ainda mobilizar de tal modo a sociedade e a comunidade cultural brasileiras, de maneira a conformar um potente movimento cultural no país que expresse, com criatividade e liberdade, todas as contundentes mutações em andamento.

Uma rápida discussão sobre a conexão entre cultura e desenvolvimento se impõe. O desenvolvimento, muitas vezes, é reduzido a sua dimensão meramente econômica. A imbricação entre cultura e economia é hoje cada vez mais evidente. Desde meados do século XIX com o surgimento das indústrias culturais tais interfaces começaram a ser construídas. O gigantesco avanço destas indústrias nos séculos XX e XXI intensificou ainda mais as relações. A emergência da chamada “economia criativa”, em anos mais recentes, ampliou imensamente os enlaces entre cultura e economia. Na atualidade a percepção da dimensão econômica da cultura tornou-se algo cotidiano e até banal. Em seqüência, aparece como quase um senso comum, a afirmação da cultura como desenvolvimento, porque produz emprego e renda.

Associação assumida, o desafio colocado na contemporaneidade parece ser o de definir que tipo de articulação se deseja entre cultura e economia, pois se isto não acontece estamos apenas, conscientemente ou não, submetendo a cultura à lógica do capitalismo e das grandes empresas, com todas as suas contradições, desequilíbrios e iniqüidades. Necessário, portanto, assumir que a alternativa desejável é aquela que enlaça preferencialmente cultura e micro e pequenas empresas, no âmbito dos princípios da economia solidária, para evitar monopólios, umbilicalmente contrapostos à diversidade cultural. Cabe relembrar que no mundo contemporâneo a diversidade tem sido reconhecida, através de declaração e convenções, como um valor, pois a riqueza cultural guarda uma relação imanente com sua diversidade e capacidade de diálogo intercultural.

No caso brasileiro, esta contraposição visceral entre monopólios e diversidade, fica evidente na configuração do campo da comunicação midiática, configurado na ditadura militar e persistente até os dias de hoje. A mídia eletrônica em nosso país é concentrada nas mãos de algumas famílias, funciona em rede nacional quase o tempo todo e produz quase toda sua programação, com exceção dos enlatados norte-americanos e programas religiosos. Esta configuração, por exemplo, excluí da nossa televisão as ricas culturas regionais brasileiras, que apenas têm aparições eventuais, quase sempre caricaturais e estereotipadas. Nesta perspectiva, a democratização da comunicação tem importância crucial para a democracia cultural, inclusive para a preservação e a promoção da diversidade cultural e, por conseguinte, para o desenvolvimento da cultura brasileira.    

Mas é sempre bom lembrar que cultura não é desenvolvimento somente – ou mesmo principalmente – porque produz emprego e renda. Hoje não é concebível pensar desta maneira unilateral, pois ela exprime a recaída em uma visão economicista do desenvolvimento, quando sabemos que o desenvolvimento na atualidade deve ser compreendido, de modo mais complexo e integrado, comportando dimensões econômicas, sociais, políticas, ambientais e culturais.

A noção contemporânea de desenvolvimento nos obriga a entender de maneira bem mais abrangente o papel da cultura. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que cultura é desenvolvimento, não só porque produz emprego e renda, mas também e principalmente em, pelo menos, três outros sentidos: 1. Como fortalecimento do pertencimento e da identidade cultural, com suas conseqüentes repercussões políticas, culturais, econômicas e existenciais; 2. Como articulação simbiótica com a informação em uma sociedade cada vez mais caracterizada como do conhecimento, na qual o saber adquire um lugar imprescindível como motor do desenvolvimento e 3. Como desenvolvimento das subjetividades, componentes essenciais para a construção de outro mundo, fundado em novos valores sociais, mais democráticos, equânimes, justos, solidários, sensíveis e criativos.

Nesta perspectiva, algumas indagações tornam-se inevitáveis: como imaginar, por exemplo, uma sociedade melhor, um Brasil verdadeiramente desenvolvido, sem a superação de preconceitos, discriminações, intolerâncias e violências expressos, por exemplo, através de valores classistas, machistas, racistas, homofóbicos e outros marcados por preconceitos e intolerâncias?

A configuração de um amplo, rico e plural movimento cultural se apresenta como vital para o aprofundamento da democracia, a construção de uma democracia substantiva e o desenvolvimento sustentável da sociedade brasileira. Este movimento cultural nada tem de neutro. Ele necessita de políticas culturais que não só busquem o desenvolvimento quantitativo do campo cultural, mas estejam atentas cotidianamente para a qualidade da cultura que está sendo apoiada e estimulada. Esta cultura deve configurar uma cultura cidadã, porque radicalmente comprometida com a realização em plenitude da cidadania. A cultura cidadã tem como horizonte uma democracia que, para além das imprescindíveis regras da democracia e do desenvolvimento, signifique efetivamente: igualdade, inclusive de oportunidades; justiça social; solidariedade; reconhecimento da diversidade social, política e cultural; respeito às diferenças; dialogo intercultural; paz; liberdade e felicidade.                              


* Secretário de Cultura do Estado da Bahia. 

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